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GENTE NOSSA | Constantino Vidal Memórias do Bairro da Liberdade

Fotos: Francisco Melim | Texto: Catarina Peixoto

A CASA ONDE NASCEU É AGORA UM HOSTEL, FRUTO DO DESPOVOAMENTO DO BAIRRO DA LIBERDADE, MAS AS MEMÓRIAS QUE GUARDA CONSIGO TRANSPORTAM-NOS PARA UM BAIRRO VIVO E VIBRANTE, QUE GUARDA NO CORAÇÃO. HOJE É ALUNO DA UNIVERSIDADE SÉNIOR E MANTÉM-SE ATIVO E PARTICIPATIVO NA FREGUESIA, COM UMA DILIGÊNCIA QUE SEMPRE O CARACTERIZOU.

Assim é Constantino Moreira Vidal, nascido e criado na Rua B do Bairro da
Liberdade, com 82 anos e uma vida recheada de histórias e recordações que partilha com satisfação e saudade. Com uma infância passada a brincar na rua, jogando à bola e lançando papagaios no Monsanto, o Sr. Constantino recorda descer as ruas alcatroadas (de onde é atualmente o tribunal) em
carrinhos de esferas. “Era uma coisa louca por aí abaixo, lá de cima até à
estação.” De vez em quando, aparecia o guarda a cavalo “…e a gente largava
tudo pelo meio da serra onde o cavalo não podia andar.” Colecionando
aventuras, houve também, certa vez, uma em que se dirigiu a pé com mais dois ou três amigos até ao Estádio Nacional para ver a final da Taça de Portugal entre o seu clube de eleição, o Benfica, e o Sporting.

Depois de terem entrado à socapa acompanhados por pais fictícios (“ó
vizinho, diga que eu sou seu filho!”) os rapazolas só volveram à Quinta
do Cardim já eram quase dez da noite e foram recebidos com direito a
raspanete e sermão cantado. Assim passou a sua infância, até chegar a altura de ir para o liceu. À noite, no verão, brincava até às onze. “Aquilo era uma família, uma pequena aldeia.” O Bairro da Liberdade era composto por muitas pessoas com ascendência rural e que traziam consigo os hábitos da aldeia. A Rua B tinha muito comércio e era, na sua maioria, habitada por famílias dos chamados “serviços”, como empregados bancários, de escritório ou de balcão.

Na rua C moravam famílias com menos habilitações e na Rua A viviam os operários. Os banhos de domingo eram tomados no balneário público, onde se geravam filas intermináveis. “A malta, quando se apanhava lá dentro com água quente, a complicação que era… O empregado batia nas portas para nos tentar despachar.” Nessa altura, as casas no Bairro da Liberdade tinham apenas uma pia na cozinha, com uma única torneira, e na casa de banho
não havia água canalizada. No Verão, não se conseguia estar dentro de
casa. “Era um calor tremendo e todos vinham para a rua.” Muitas eram as
diferenças na vivência relativamente aos dias de hoje. Por exemplo, à
época, quem falecia no bairro era enterrado no cemitério do Alto de S. João. Utilizando as chamadas carretas, o cortejo fúnebre era feito a pé, totalizando cerca de duas horas de caminhada, mas com pausas regulares.
“Os homens paravam em todas as capelinhas, que eram as tabernas.
Quando chegavam ao enterro já iam bêbados…”

Chegado à idade adulta, conta-nos que o seu primeiro emprego foi no primeiro Censo de 1960, onde trabalhou à noite e onde recorda haver
“um computador maior que isto tudo”. Depois foi trabalhar para a Câmara Municipal de Lisboa como datilógrafo e, de seguida, foi convidado
para se tornar desenhador. Amante do desporto, sempre esteve ligado ao Liberdade Atlético Clube, do qual é o sócio n.º 1. No clube desempenhou muitas funções, até artista em teatro de revista. “Fui tudo menos presidente, que nunca quis.” Do clube recorda que tinham sempre casa cheia, “porque o Liberdade era o centro social onde as famílias se encontravam”. Havia também bailes ao domingo e o clube tinha a única televisão do bairro. “Toda a gente lá ia ver”, numa sala que levava umas oitenta pessoas, mas onde todos ficavam em absoluto silêncio.

Um pouco antes do 25 de abril, a Direção Geral dos Desportos “pensou em fazer um torneio de minibasquete a nível de Lisboa”. Como responsável pela subdelegação do Liberdade Atlético Clube, “arranjei três ou quatro miúdos jogadores juniores de basquete para me ajudarem e serem treinadores”. No primeiro dia de treino, o Sr. Constantino deparou-se com setenta a oitenta
jovens rostos à sua espera. “Era uma autêntica multidão.” Apesar da escassez de meios e de equipamento adequado, decidiu “que cada um
treinava com o equipamento que tinha, descalço ou de alpergatas” e que a única condição era que todos tomassem banho no final. Chegado o dia da final no Estádio Nacional, jogaram com uma equipa mista, de raparigas e rapazes, e ganharam ao Benfica com uma grande diferença de pontos. “Foi espetacular!”

Ainda a trabalhar na Câmara Municipal de Lisboa, tirou à noite o curso de Construção Civil na antiga Escola Industrial Machado de Castro. No fim do curso fez a viagem de finalistas a Angola, de onde regressou com uma oferta de trabalho, só que entretanto deu-se o 25 de abril e já não foi. “Eu vivi o 25 de abril no local. No Terreiro do Paço, no Largo do Carmo.” O Sr. Constantino conta-os que, nesse dia, estava a sair de casa para ir trabalhar quando ouviu os vizinhos gritarem que se estava a dar uma revolta. Rumou imediatamente para o Terreiro do Paço e deparou-se com uma praça cheia de soldados, liderados pelo Capitão Salgueiro Maia, e de pessoas expectantes como ele. Logo surgiram os tanques de cavalaria que eram a favor do regime. “Salgueiro Maia foi negociar, como toda a gente sabe, e o outro foi embora”. Dali, o Sr. Constantino seguiu os soldados até ao Largo do Carmo, que também estava cheio de tropa, chaimites e pessoas. Após a revolução, a sua vida reorganizou-se, como a de todos os portugueses, não esquecendo este tão importante marco na vida do país.

No ano seguinte, tendo em conta que grande parte das pessoas “não estavam recenseadas, só os empregados do estado”, integrou uma comissão para fazer o recenseamento da população do Bairro da Liberdade
e da zona de Campolide. Com essa comissão organizou também a primeira Assembleia Constituinte, com 250 deputados eleitos para depois fazerem a constituição da República. “Nós fizemos esse trabalho, supervisionados pelo MFA.” Depois deram-se as eleições a 25 de abril de 1975 e de seguida, passados alguns meses, a comissão voltou a fazer outro recenseamento mais atualizado. “Foi um trabalho muito importante, na minha opinião, e contribuiu para a democracia atualmente existente.”

Presentemente, Constantino Vidal mora no Bairro da Serafina, para onde se mudou há cerca de 25 anos e que, para si, na altura “era o bairro novo”. Entretanto, já tinha constituído a sua própria firma de construção civil, onde chegou a ter trinta empregados. Hoje em dia, aluno assíduo da Universidade Sénior, frequenta as disciplinas de História, Expressão Dramática e Escrita Criativa. “Eu nunca escrevi nada. Quando cheguei aqui, comecei. Há muito
tempo que estava parado.” Da Junta de Freguesia conta-nos, versejando,
que a mesma “criou uma universidade, que deu primazia a fregueses de certa idade; pela Cultura ciosos, ávidos de aprender; sôfregos de beber na fonte de onde brota o Saber.” Fica o relato de uma vida recheada de proezas, muitas mais ainda por contar, que perfazem um caminho considerável e que dariam um livro de memórias digno de editar.

Reportagens

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